quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

M(*)ney


Dinheiro. Astral estranho cerca esta palavra. Seja na especulação online, global e sem cheiro, seja nas imundas notas amassadas do mundo físico; é um astral estranho.

Tranquilizo quem resistiu a este par de frases hippongas e continua lendo: eu sei que se pode comprar coisas bacanas. Não só objetos: dá pra comprar tempo, informação e saúde. Mas também dá pra fazer um monte de merda com tempo, informação e um cirurgião plástico.

Não conheço ninguém que goste de dinheiro. Quase todo mundo que eu conheço gosta (adora, venera, necessita) do poder e do prazer que o dinheiro pode trazer.

(*)

Tudo na vida tem um lado bom e um lado ruim (com exceção dos LPs do Pink Floyd, que tinham dois lados bons). O dinheiro tem um lado interessante: ele é sincero, fala alto e deixa tudo explícito. É uma ferramenta útil para explicar como e porque andam as coisas. Money talks, bullshit walks

(*)

Para facilitar a convivência, nossa tragicômica raça criou relógios, sinais de trânsito, apertos de mão, gramática e moeda. São algodões entre cristais. Mal usados, relógios, sinais de trânsito, apertos de mão, gramática e moeda se transformam em elefantes numa loja de cristais. Ah, nossa cristalina raça...

O que acontece com a boa ou má utilização do dinheiro, todos sabemos. O que frequentemente esquecemos é de reconhecer sua importância como mediador de trocas. Imagine se não existisse: se eu fosse músico, teria que pagar meu médico com uma canção! E se nenhum médico gostasse do meu som? Por outro lado, nenhum ginecologista jamais poderia ouvir minhas músicas pois eu não teria uso para seus serviços.

Claro, poderíamos fazer tudo por amor. Mas... ah, o amor! Melhor não sobrecarregá-lo, né? Melhor deixá-lo florescer ao seu modo. Onde e quando menos se espera. Frágil e imortal.

(*)

Alguns artistas (e todas as religiões) também oferecem sistemas para explicar o mundo. E há os pensadores, é claro. Marx e Adam Smith. Freud e Jung. Einstein, Newton, Copérnico, Galileu... O grande Darwin! Todos com sacadas geniais. Cada um na sua.

Tudo na vida tem dois lados: um bom e outro ruim (com exceção dos discos do ............. , que só têm lado ruim). Quando um sistema é muito bem concebido, é difícil escapar da tentação de usá-lo fora de contexto. É conhecido o caso do cientista soviético que tentava aplicar as ideias de Marx na (pásmem!) genética das plantas. Também é muito comum usarem, erroneamente, o darwinismo para explicar movimentos sociais. O dinheiro, nem se fala, tá sempre entrando onde não foi convidado: nas relações familiares, nas amizades... no amor? Nah... Deixemos o amor em paz. Falar de amor não é amar.

Com exceção das religiões (que são indiscutíveis por se basearem na fé e em dogmas) todos os sistemas pra explicar o mundo, por melhor que sejam, são parciais. Eles têm limites. A realidade nunca se deixa capturar completamente. Algumas vezes até parece que ela não existe, né?

Acho que enveredei por esta trilha porque começou a tocar nos meus fones a canção que diz: it all makes perfect sense expressed in dollars and cents, pounds shillings and pence. E, por um momento, tudo fez sentido. Só por um momento.

A realidade, bichinho assustado, escapou de novo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Diário

Uma folha em branco ao lado de uma caneca cheia de lápis que, com suas pontas para cima, parecem lanças em repouso numa tribo invisível. E o silêncio de uma manhã que não começou.

Um passeio rápido pelas notícias deixa claro: tudo escuro.

Talvez não... não sei... entendo pouco de economia e é difícil confiar em qualquer um desses spin doctors que falam o tempo inteiro, sempre dando curva e nó em pingo d'água. Sempre deformando os fatos para caberem em suas teses.

Gosto das palavras. E do silêncio. Por isso me chateia quando não nos deixam confiar nelas, quando não dão espaço a ele.

É frustrante quando situações cada vez mais complexas geram atitudes cada vez mais simplistas. Há quem associe esse descompasso ao imediatismo das redes sociais. Será? Não sei... acho que rola também uma preguiça e falta de noção que se expressam ali por conveniência mas são naturais das pessoas. Ainda mais quando estão assustadas. E como me parecem assustadas as pessoas no momento!

Ok, ok, menos... talvez seja essa gripe fora de época que me deixa a fim de ficar na minha, em silêncio. É possível silêncio ou, nesses dias demasiado barulhentos, ele é um buraco n'água?

Tento imaginar como seria tal buraco enquanto observo o redemoinho de água prestes a descer pelo ralo da pia enquanto preparo o chá nesta manhã que nem começou.

Gosto das palavras e dos silêncios dos poetas. Dia desses, passou por meus olhos, novamente, este poema do Hans Magnus Enzensberger. Coincidência?




terça-feira, 1 de novembro de 2016

TRAMAND(*) MANTRAS


Além do silêncio, é preciso estar com a cabeça vazia para ouvir os próprios passos. Não é comum. Seria insuportável ouvi-los sempre. Dar-se conta de cada piscada de olhos, ser consciente da escura fração de segundo cada vez que a pálpebra desce para lubrificar o globo ocular, fragmentaria tudo que vemos. Quebraria para sempre tudo que queremos unir.

É preciso ignorar algumas coisas para conhecer outras. Vale o mesmo para os sentimentos. “Sentir tudo com intensidade total” são palavras que ficam bem em livros do século XIX ou canções dos anos 60; na vida real, a tradução pode ser “não sentir nada”.

Mas estados de hipersensibilidade ou sensibilidade embotada (opostos que dão na mesma) às vezes pintam. Há que lidar com eles. Para mim, eles costumam acontecer no fim dos ciclos, quando o cansaço acumulado – que era contido pela excitação do vir a ser – cobra seu preço.

Digito este texto e ouço o barulho das teclas. Não é comum. Seria insuportável ouvi-lo sempre. Estou naquele (neste) estado em que tudo parece falar alto demais. Por sorte, tenho um mantra salvador que me redime. Quase uma oração. Num misto de desabafo e súplica, exclamo mentalmente: “Chato pra caralho!”. Pronto, descarrego. Alívio imediato.

Não bastam as palavras, o ritmo também é importante: ênfase nas consoantes, um “ch” longo, pausa dramática depois do “a”, desfecho percussivo como patas de cavalos velozes em tonalidade descendente.

Mais ou menos assim: “Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!”.

– Corrupção, futebol, mesa redonda?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Telefone, email, menu?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Gracinhas na TV, candidatos a prefeito?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Gente fina, cara mala, chororô?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Beijinho, rockinho, diminutivinhos?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Sonzão, vamo tirar o pé do chão?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Cobranças, promessas, camaradagem de elevador?

 – Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

Nem tudo é chato pra caralho, é claro. Dizer “tudo” é morrer. O mantra ajuda a chegar às coisas que nunca são chatas pra caralho: um par de olhos, um sorriso...

(*)

Também tenho um mantra especulativo. É o seguinte: fecho os olhos e fico julgando qual seria a pior piada de todos os tempos. Busco na memória anedotas de qualidade decrescente até empacar numa zona nebulosa em que é difícil saber se, de tão sem graça, ainda se trata de uma piada. É neste pântano da graça sem graça que passo um tempo especulando. É nessa coxilha que solto meu pensamento xucro pra pastar: na impossibilidade de saber qual é a pior piada do mundo. E me divirto.

A pior pergunta do mundo, eu sei qual é. Esta: “O que tu tá pensando?”. Não com a intenção indignada de “quem tu pensa que é?!?” ou “que porra é essa?!?”. Me refiro ao “que tu tá pensando” no seu sentido mais direto, disparado por alguém que tenha intimidade suficiente para estranhar a profundeza incomum do nosso silêncio em determinado momento.

Que armadilha cruel disfarçada de um simples pedido para revelarmos o que estamos pensando!

Todo cara dado a silêncios já deve ter ouvido essa pergunta. Todos que convivem com alguém assim já devem tê-la feito.

Tiro pela culatra, a pergunta nos resgata de um silêncio para jogar-nos em outro. Para respondê-la temos que pensar no que estávamos pensando. Somos obrigados a traçar um mapa do acaso que levou nosso pensamento e... foi-se toda a espontaneidade. Como uma luz acesa de repente que nos cega. Como uma pedra que atinge um plácido espelho d’água que, agitado, já não devolve imagem alguma.

Uma pedra num lago, uma gota de adoçante no café. Algo que cai numa superfície líquida até então inerte gerando círculos concêntricos que partem em direção às margens.

Taí um mantra visual. Um protetor de tela pra minha cabeça, papel de parede mental. Uma imagem distraindo a porção mais excitável do cérebro pra que a parte mais profunda e arredia venha à tona.

Um mantra visual. Para esquecer que as cores têm nome. Esquecer os pontos e as linhas que ligam os pontos para que o quadro se apresente na sua totalidade. Sem pergunta nem resposta. Sem “por quê?” nem “porque!”. Sem sentido, com significado.

(*)

Putz, há tantos assuntos palpitantes sobre os quais palpitar e eu só consigo pensar numa pedra caindo na água. Eleições, crimes, julgamentos, lançamentos... e só me interessa o espelho d’água, de repente tomado por círculos concêntricos. Quando o último chegar à margem, neste micro tsunami, numa banheira ou copo de uísque, a pedra, ou seja lá qual tenha sido a causa, já estará no fundo, terá desaparecido, só restarão consequências. Irradiação fóssil.

Sigo focado num mantra que cega e faz enxergar.

sábado, 29 de outubro de 2016

C(*)NVIVÊNCIA

No tempo em que se falava de política com receio e olhando pros lados, uma piada de humor negro dizia que “a esquerda brasileira só se une na prisão”. E era verdade. Quanto mais aparentemente próximos nas ideias, maior a dificuldade de união na vida real. A regra era subdivisão em correntes, facções e subgrupos. Pra ficar num exemplo folclórico: era quase impossível ver o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil juntos. 

(*)

Já vi religiosos de crenças bem parecidas (originadas no mesmo cristianismo) discutindo com uma veemência que não usariam em discussões com agnósticos ou seguidores de outras tradições.

Água e azeite, tão próximos e tão distantes.

(*)

Às vezes é mesmo mais difícil mudar pequenos detalhes e vencer pequenas distâncias do que fazer gestos grandiloquentes e dar grandes saltos, né? Mais fácil mudar de profissão do que mudar o modo de encarar a profissão. Mais fácil ir morar em outro continente do que ir dormir no quarto ao lado.

(*)

Narcisismo das pequenas diferenças é um conceito usado por Freud. Se entendi bem, se refere a situações em que o pouco que há de diferente (entre duas pessoas, duas cidades, países) se sobrepõe ao muito que há em comum.

Ouvi a expressão em dois momentos bem distintos: numa palestra sobre a II Guerra Mundial (que abordava a rivalidade entre nações vizinhas, culturalmente próximas) e num papo com um amigo que achava seus primos chatos e suas primas pouco atraentes (ah, a distância entre parentes próximos...).

Freud, como todo grande poeta, sempre dá pano pra manga. Seja na sala de aula ou na mesa do bar.


Ps.:
Narciso é aquele que (segundo Caetano Veloso na letra de Sampa) acha feio o que não é espelho.


Ps 2.: Tentando descobrir mais sobre o tal narcisismo das pequenas diferenças no amansa-burro digital, tropecei numa parábola de Schopenhauer:


Em um gelado dia de inverno, os membros da sociedade de porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de aquecerem-se os fez voltarem a juntar-se, se repetiu aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Pequenos Contos (9)

Ninguém sabe como o incêndio começou. Quando o colorido da favela deu lugar às brasas escuras, ecos de lamentos se fizeram ouvir. Menos de Mauro, que pensava coisas do horizonte. Fabrícia chegou do serviço e ele abraçou seu pranto. “Queimou besteira só. Minha casa é você, sua casa sou eu.'' Os jornalistas guardaram seus bloquinhos em um nó da garganta. E, naquele bairro, números viraram pessoas pela primeira vez.

Pequenos Contos (8)

Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que tinha a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Nas chuvas, refugiava-se no moinho, girava a roda d'água e uma curva colorida surgia. Orgulho. Quem tem avô poderoso assim? Até que o coração do velho desabou sobre a plantação. Girou o moinho a fim de pintar para ele, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Diário

Seu mundo cabia em um carrinho de feira – e ainda sobrava espaço, talvez uma reserva de esperança para os dias que virão. Um casaco o protegia do clima de um dígito da madrugada Itabunense. Ao passar por um montinho de pano que, ao que tudo indica, era uma mulher encolhida pelo frio, tirou seu casaco e a cobriu. Ela sorriu e voltou a dormir. Ele seguiu andando, mais aquecido que antes.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

EFEIT(*) MANADA


Hegemonia me irrita. Melhor: me dá sono. Melhor ainda: irrita E dá sono. Seja nas relações pessoais, na moda, na tecnologia ou mesmo no futebol. Neste, se trata de ganhar, é claro. Mas acho bobagem as discussões sobre quem tem o maior estádio, a maior torcida.

Na indústria cultural, não é de agora o uso de metáforas bélicas: o filme foi um “blockbuster” (arrasa-quarteirão), a música “estourou”, rolou uma “blitz” de divulgação, visando o “público alvo”. Sintomático: guerra, hegemonia.

Fico irritado e com sono quando, num piscar de olhos, o país inteiro começa a usar palavras em italiano macarrônico ou termos mal-assimilados da cultura indiana porque assim falam numa novela da rede de TV hegemônica. O “efeito manada” não acontece só nas camadas mais populares. Se seus amigos cultos começaram a falar de belle époque com uma sincronicidade estranha, provavelmente deve ser influência de um novo filme do Woody Allen.
(*)

Segundo a tese tecnicista, tudo que pode ser quantificado pode ser comparado e aprimorado. O raciocínio pode servir para uma fábrica de parafusos, mas será que faz sentido para qualificar vinhos, restaurantes ou perfumes? 

Quando as mais importantes revistas especializadas começaram a dar notas numéricas (números com vírgula!) aos vinhos, a excitação do mercado foi evidente. Uma ferramenta para medir objetivamente o que é subjetivo. Quem realmente entende do assunto despreza esses rankings. Mas, para o mercado, funciona. E muito. Parece que as pessoas não estão interessadas nas sutilezas do vinho ou no prazer do jantar. Elas querem dizer que tomaram O MELHOR vinho e jantaram n’O MELHOR restaurante. Querem estar no lado hegemônico.


Existe o melhor beijo? Até pode existir, mas só na opinião de, no máximo, duas pessoas. O melhor beijo jamais será hegemônico. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Diário


Na volta de uma recente viagem, esqueci no ônibus o livro que estava lendo -Número Zero, Umberto Eco. Rateadas dessas acontecem com mais frequência do que eu gostaria de admitir. 

Pra evitar esquecimentos, me disciplinei a jamais colocar livros no "bolsão em frente ao assento (o verdadeiro triângulo das Bermudas do transporte rodoviário, onde livros somem para nunca mais)". Nem sempre funciona: na ocasião, o livro deve ter caído das minhas mãos para o colo e de lá para o chão enquanto eu sonhava. Só me dei conta da perda em casa, quando procurei o livro na mochila para aquela lidinha básica antes de dormir. Putz... a alternativa era buscar na estante um substituto, mesmo já tendo lido todos que estão ali.

Quem gosta de ler e lê bastante deve concordar comigo: com tanta coisa boa pela frente, tanta ignorância a aplacar, reler, mesmo os favoritos, não é uma decisão fácil. Dá um pouco a sensação de que deixamos de procurar, de avançar. Por outro lado, um reencontro com um livro que tenha nos marcado está sempre no horizonte dos nossos desejos, né? E no fim das contas, podemos avançar em várias direções, mesmo refazendo o caminho. 

Enfim... mania é mania, não se discute. Gosto de ler antes de dormir e precisava escolher, naquela estante, um livro já lido.

Ainda no corredor, entre o quarto e a sala, me decidi pelo Grande Sertão: Veredas. Mas, enquanto percorria com o olhar as lombadas, me lembrei que, em Itabuna, um mesmo livro (Doutor Fausto) havia pintado em duas conversas diferentes, com uma colega e minha irmã. Muita coincidência. Resolvi dar essa moral pro destino e, pedindo desculpas ao Guimarães Rosa, desviei para o Thomas Mann.

Li Doutor Fausto em 2012. A releitura tem um aspecto novo, interessante e divertido: descobrir o que o tempo fez ao livro e ao leitor.  Já nas primeiras páginas, o prazer cada vez mais raro de um texto denso e profundo. Linda dissonância da norma nesses tempos velozes e fragmentados da www, onde todo mundo escreve se achando juiz e comediante, com incontinência verbal e as postagens já envelhecem enquanto são escritas. 

Como contraponto, já tá valendo.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Pequenos Contos (7)


Mau hálito. Nem deu bom dia. Duas semanas sem sexo. Bronca por esquecer o aluguel. E a cerveja com meus amigos? Por que só eu troco a fralda? Contas. Demandas. Saudade do passado… Hoje, acabo com tudo. E, então, mesmo cansada do trabalho, me recebe com o sorriso mais lindo do mundo, diz o que preciso com um abraço forte e sem palavras e me deita no colo para um longo cafuné. “Dias melhores virão'', revela. E, naquele momento, me lembro porque me apaixonei: ela sabe a verdade das coisas.

Pequenos Contos (6)


Enquanto os outros tinham um avô divertido, o dele gastava os dias em antigas fotografias. Odiava-o. E, por isso, nunca mais o viu. Anos depois, encontrou a caixa de fotos. Reconheceu-o em uma delas, pelo olhar severo, empunhando um fuzil anarquista em Guernica, antes da cidade virar Picasso. Entendeu o avô. Quem viveu a república espanhola poderia voltar para casa? E, redimido pelo tempo, tornou-se fotógrafo.

sábado, 18 de junho de 2016

Pequenos Contos (5)


Vó curava os dias tristes com bolinhos de chuva e esticava as manhãs leves com broas de milho. Cair de bicicleta dava em galinhada; perder um dentes, em sorvete de nata. E para dor de saudade, vó? Ela sabia que, para isso, não havia receita, pois durante anos tentara cozinhar a perda do vô. E jogou o soluçar do neto no ombro, tirando o amargo de sua boca e enganando o vazio.

Pequenos Contos (4)


Era uma caixinha mágica. Com uma volta na corda, a bailarina ganhava vida e silenciava os golpes do padastro em sua mãe. Com duas, a melodia encobria o ranger da maçaneta do seu quarto e o odor de álcool velho deitando-se em sua cama. Mas se ela desse toda a corda na caixinha, a bailarina girava tanto, mas tanto, que trazia seu pai de volta. E, juntos, fugiam para um lugar onde a felicidade fosse regra, não exceção.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Pequenos Contos (3)


Quando ficava de cama, seu pai trazia um velho livro cujas últimas três páginas haviam sido arrancadas. Então, ela se aninhava nos seus braços para inventarem juntos o final. Na gripe, a princesa fugiu do castelo e foi ser repórter. Perna quebrada: deixou o príncipe em casa cozinhando e saiu com as amigas. Amídalas? Juntou-se a outras e mudaram o mundo. Ontem, já crescida, foi comprar o primeiro livro para a filha. Escolheu com carinho, arrancou as três últimas páginas e, sorrindo, pediu: “para presente".


Pequenos Contos (2)


Ele sabia ler a chuva. E escrevia pela enxada. Sua tristeza eram as mãos, feridas pela necessidade. Por nunca ter segurado um lápis, fez o impossível para seu menino. Na hora da foto de formatura, plantou fundo as mãos nos bolsos da calça surrada, com medo de envergonhar o filho doutor. Com carinho, o rapaz as colheu, abriu feito palma de flor e desferiu longo beijo. Desde então, Emanuel sorri quando olha para elas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Pequenos Contos (1)


Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava. E ela foi se despindo na frente de todos. Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma só lembrança. O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o homem de sua vida. Passava as tardes na janela, esperando. “Ele vem'', dizia a todos… Então o marido, companheiro de décadas, passou a lhe trazer margaridas para cortejá-la. Até que, numa noite, ela disse, colocando as mãos em seus ombros: “Não precisa mais. já me conquistou”. E dormiu um sono longo. Vovô ainda leva flores, todos os dias.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

(*) Futur(*) em Flashback


Aí vai mais uma pergunta sem resposta (pois caminhar vale tanto quanto chegar): qual a experiência mais rica de significados, ver um jogo de futebol ao vivo ou o videotape, já sabendo o que aconteceu? Ler um livro pela primeira vez ou relê-lo?

Sabendo de antemão o resultado do jogo (o fim do livro), podemos analisar os detalhes de forma mais objetiva e racional, ligar causas e consequências de cada lance sem precisar vagar por tudo que poderia ter sido e não foi.

Sem saber o que aconteceu, compartilhamos com os jogadores a incerteza de cada jogada, os possíveis futuros que cada segundo traz. Ao ver o jogador correndo para bater o pênalti, não estaremos só esperando que a bola entre onde já sabemos que entrou. Estaremos especulando uma defesa do goleiro, uma bola fora ou na trave, um gol no outro canto. Talvez seja um daqueles casos em que sabendo menos sabemos mais.

Impor ao passado o ponto de vista do presente é uma armadilha, o tal determinismo retrospectivo. Deixamos de lado vários possíveis desfechos de um lance ao favorecer aquele que realmente aconteceu. Começamos pensando que ele era possível, passamos a achá-lo lógico e acabamos acreditando que ele era inevitável. E inevitável é uma palavra com raríssimas aplicações.

(*)

A música é um caso à parte. Ela cria sua própria hora, silencia o tic-tac do relógio, destrói os diques do tempo, as represas do passado, o muro do futuro. Cada vez que ouço uma boa canção, mais nova ela me parece.

(*)

Meus textos digitais quase sempre têm post-scriptum. Sinto-me um canalha por isso. Eles só fazem sentido no mundo físico, quando o cara esquece algo, não quer borrar a folha e, lá embaixo, faz o reparo. No mundo digital (cut, paste, undo) tudo está a um clique de ser refeito. A edição não deixa rastro.

Dura pouco a sensação de que sou um canalha: há espaço, sim, para o p.s. em um texto digital! Ele cria uma nova camada de leitura, enriquece o texto. Deixa claro que aquela informação pintou depois. Mais que isso: deixa claro que a gente não quis esconder que aquela informação pintou depois.

Honestidade. Fidelidade. Espero que nossa urgência de viver não apague as palavras com muitas sílabas. Espero que nossa pressa de chegar não nos deixe cegos para a paisagem, surdos para o silêncio, cansados para abstrações.

(*)

Parece óbvio que passado e futuro são duas coisas completamente diferentes. Mas nós os tratamos como se fossem a mesma coisa: uma quantidade de tempo. Há uma assimetria intransponível entre passado e futuro. São alhos e bugalhos. Incomparáveis. O passado não é o futuro que já aconteceu. O passado É. O futuro SÃO.



p.s  1: não se usam mais fitas, mas a palavra ainda é videotape, né? “Replay” acho que não se usa mais... “Olho no lancêêê! Peeeeelas barbas do profeta!”, “Feitooo!”, “Aaaaaaaconteceu, torcida potiguar!”, “Aaaaadivinhem!”, “A batiiiiiiiida! Que beleeeeza!”, “Tá lá o corpo estendido no chão!”, “Gol-gol-gol!”...

p.s  2: Talvez o tempo não corra linear como água saindo de uma torneira. Talvez se pareça mais com catchup saindo aos trancos das antigas embalagens de vidro. Talvez o tempo esteja se lixando pro que eu penso dele. Talvez? Certamente.

p.s  3: Sobre assimetrias e coisas que viram outra: me lembrei da frase do Mario Quintana, “a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A diferença é (*) que tem(*)s em c(*)mum


Dia desses, quando um amigo revelou aos seus ouvintes seu desgosto pelo cinema, foi imediatamente fuzilado com olhares que mixavam espanto, reprovação e pena. Eu mesmo devo ter misturado esses três ingredientes quando li que o poeta João Cabral de Melo Neto não gostava de música. Ou quando ouvi Maria Bethânia dizer que não gosta do pôr do sol (segundo ela, é uma hora “nem barro nem tijolo”).

Mais do que questões de gosto pessoal, me interessa o caráter provocador dessas declarações. São pequenos desafios ao bom-senso-uníssono-ensurdecedor. Valorizo cada vez mais os pensamentos minoritários, quase idiossincráticos. É preciso preservá-los da patrola e da patrulha. São como as notas dissonantes que embelezam tantos acordes. Não podem silenciar.

O mundo virtual, com suas redes sociais, propicia que pensamentos minoritários encontrem um fórum, o que é muito legal. Estranho é que esse encontro sirva para que se reproduzam os mesmos vícios das maiorias. Um monte de gente que pensa igual se encontra, se fecha em grupos muito específicos e perde contato com pensamentos diferentes. Isolados, os iguais se realimentam, radicalizam e acabam atrofiando os músculos da tolerância. Já não são minorias: são maiorias em miniatura. Mas, como todos sabemos, uma lagartixa não é um jacaré pequeno.

É mais fácil pregar para os convertidos. Mas, faz sentido? Nah! Temos é que aprender a conviver! Sem represas, sem apartheid. Sem vidas secas, nem olhos úmidos.

(*)

Quando entramos em contato pela primeira vez com uma banda, uma pessoa ou uma canção é natural que nos perguntemos com que outra ela se parece. Pensamos por analogia. Precisamos catalogar a informação, para isso usamos atalhos. Tudo bem, se for só a reação inicial. O perigo é ficarmos para sempre nos resumos e simplificações. Pior ainda se, para sermos mais rapidamente entendidos, cedermos à tentação de abreviar, catalogar e traduzir nossas próprias atitudes. Muito cuidado com a pessoa, a banda ou a canção que quer se parecer com outra! 
(*)

Algumas coisas são difíceis e levam tempo. Algumas dessas coisas (difíceis e que levam tempo) são as melhores da vida. Pensei nisso enquanto comia um pouco de lixo num fast-food. Falando em comida (e mudando de assunto): acho estranho que as refeições sejam unanimemente aceitas como momentos de confraternização. Ok, ok, “partilhar o pão” é uma metáfora insuperável, sem dúvida. Mas não acho o ser humano, enquanto mastiga e engole, uma visão muito agradável. Talheres, copos e guardanapos não ajudam muito a disfarçar a verdadeira finalidade do “churrascão” e da “jantinha”. Pra ser sincero, acho as cenas de leões se alimentando que vejo no Discovery Channel menos agressivas do que a socialização que já testemunhei em alguns restaurantes. Pena que não entendo nada de antropologia! Gostaria de saber se sempre foi assim, em todas as culturas. Será que alguma civilização fez do momento emblemático da alimentação algo solitário e introspectivo? É a hora em que mais nos aproximamos do pó do qual viemos e ao qual voltaremos. Abocanhar, mastigar e engolir matéria para continuar sendo matéria! Nós, pobres spirits in a material world.

Desculpaí se foi mais um pensamento estranho do tipo “não gostar de música, cinema e pôr do sol”. 



p.s : ... e o prêmio de Melhor Pergunta vai para: João Cabral de Melo Neto! Ele perguntou a Vinícius de Moraes se o querido poetinha não cantava outras vísceras além do coração. Que figura ímpar, diferente! Como todos nós, né?