segunda-feira, 27 de junho de 2016

Pequenos Contos (7)


Mau hálito. Nem deu bom dia. Duas semanas sem sexo. Bronca por esquecer o aluguel. E a cerveja com meus amigos? Por que só eu troco a fralda? Contas. Demandas. Saudade do passado… Hoje, acabo com tudo. E, então, mesmo cansada do trabalho, me recebe com o sorriso mais lindo do mundo, diz o que preciso com um abraço forte e sem palavras e me deita no colo para um longo cafuné. “Dias melhores virão'', revela. E, naquele momento, me lembro porque me apaixonei: ela sabe a verdade das coisas.

Pequenos Contos (6)


Enquanto os outros tinham um avô divertido, o dele gastava os dias em antigas fotografias. Odiava-o. E, por isso, nunca mais o viu. Anos depois, encontrou a caixa de fotos. Reconheceu-o em uma delas, pelo olhar severo, empunhando um fuzil anarquista em Guernica, antes da cidade virar Picasso. Entendeu o avô. Quem viveu a república espanhola poderia voltar para casa? E, redimido pelo tempo, tornou-se fotógrafo.

sábado, 18 de junho de 2016

Pequenos Contos (5)


Vó curava os dias tristes com bolinhos de chuva e esticava as manhãs leves com broas de milho. Cair de bicicleta dava em galinhada; perder um dentes, em sorvete de nata. E para dor de saudade, vó? Ela sabia que, para isso, não havia receita, pois durante anos tentara cozinhar a perda do vô. E jogou o soluçar do neto no ombro, tirando o amargo de sua boca e enganando o vazio.

Pequenos Contos (4)


Era uma caixinha mágica. Com uma volta na corda, a bailarina ganhava vida e silenciava os golpes do padastro em sua mãe. Com duas, a melodia encobria o ranger da maçaneta do seu quarto e o odor de álcool velho deitando-se em sua cama. Mas se ela desse toda a corda na caixinha, a bailarina girava tanto, mas tanto, que trazia seu pai de volta. E, juntos, fugiam para um lugar onde a felicidade fosse regra, não exceção.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Pequenos Contos (3)


Quando ficava de cama, seu pai trazia um velho livro cujas últimas três páginas haviam sido arrancadas. Então, ela se aninhava nos seus braços para inventarem juntos o final. Na gripe, a princesa fugiu do castelo e foi ser repórter. Perna quebrada: deixou o príncipe em casa cozinhando e saiu com as amigas. Amídalas? Juntou-se a outras e mudaram o mundo. Ontem, já crescida, foi comprar o primeiro livro para a filha. Escolheu com carinho, arrancou as três últimas páginas e, sorrindo, pediu: “para presente".


Pequenos Contos (2)


Ele sabia ler a chuva. E escrevia pela enxada. Sua tristeza eram as mãos, feridas pela necessidade. Por nunca ter segurado um lápis, fez o impossível para seu menino. Na hora da foto de formatura, plantou fundo as mãos nos bolsos da calça surrada, com medo de envergonhar o filho doutor. Com carinho, o rapaz as colheu, abriu feito palma de flor e desferiu longo beijo. Desde então, Emanuel sorri quando olha para elas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Pequenos Contos (1)


Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava. E ela foi se despindo na frente de todos. Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma só lembrança. O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o homem de sua vida. Passava as tardes na janela, esperando. “Ele vem'', dizia a todos… Então o marido, companheiro de décadas, passou a lhe trazer margaridas para cortejá-la. Até que, numa noite, ela disse, colocando as mãos em seus ombros: “Não precisa mais. já me conquistou”. E dormiu um sono longo. Vovô ainda leva flores, todos os dias.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

(*) Futur(*) em Flashback


Aí vai mais uma pergunta sem resposta (pois caminhar vale tanto quanto chegar): qual a experiência mais rica de significados, ver um jogo de futebol ao vivo ou o videotape, já sabendo o que aconteceu? Ler um livro pela primeira vez ou relê-lo?

Sabendo de antemão o resultado do jogo (o fim do livro), podemos analisar os detalhes de forma mais objetiva e racional, ligar causas e consequências de cada lance sem precisar vagar por tudo que poderia ter sido e não foi.

Sem saber o que aconteceu, compartilhamos com os jogadores a incerteza de cada jogada, os possíveis futuros que cada segundo traz. Ao ver o jogador correndo para bater o pênalti, não estaremos só esperando que a bola entre onde já sabemos que entrou. Estaremos especulando uma defesa do goleiro, uma bola fora ou na trave, um gol no outro canto. Talvez seja um daqueles casos em que sabendo menos sabemos mais.

Impor ao passado o ponto de vista do presente é uma armadilha, o tal determinismo retrospectivo. Deixamos de lado vários possíveis desfechos de um lance ao favorecer aquele que realmente aconteceu. Começamos pensando que ele era possível, passamos a achá-lo lógico e acabamos acreditando que ele era inevitável. E inevitável é uma palavra com raríssimas aplicações.

(*)

A música é um caso à parte. Ela cria sua própria hora, silencia o tic-tac do relógio, destrói os diques do tempo, as represas do passado, o muro do futuro. Cada vez que ouço uma boa canção, mais nova ela me parece.

(*)

Meus textos digitais quase sempre têm post-scriptum. Sinto-me um canalha por isso. Eles só fazem sentido no mundo físico, quando o cara esquece algo, não quer borrar a folha e, lá embaixo, faz o reparo. No mundo digital (cut, paste, undo) tudo está a um clique de ser refeito. A edição não deixa rastro.

Dura pouco a sensação de que sou um canalha: há espaço, sim, para o p.s. em um texto digital! Ele cria uma nova camada de leitura, enriquece o texto. Deixa claro que aquela informação pintou depois. Mais que isso: deixa claro que a gente não quis esconder que aquela informação pintou depois.

Honestidade. Fidelidade. Espero que nossa urgência de viver não apague as palavras com muitas sílabas. Espero que nossa pressa de chegar não nos deixe cegos para a paisagem, surdos para o silêncio, cansados para abstrações.

(*)

Parece óbvio que passado e futuro são duas coisas completamente diferentes. Mas nós os tratamos como se fossem a mesma coisa: uma quantidade de tempo. Há uma assimetria intransponível entre passado e futuro. São alhos e bugalhos. Incomparáveis. O passado não é o futuro que já aconteceu. O passado É. O futuro SÃO.



p.s  1: não se usam mais fitas, mas a palavra ainda é videotape, né? “Replay” acho que não se usa mais... “Olho no lancêêê! Peeeeelas barbas do profeta!”, “Feitooo!”, “Aaaaaaaconteceu, torcida potiguar!”, “Aaaaadivinhem!”, “A batiiiiiiiida! Que beleeeeza!”, “Tá lá o corpo estendido no chão!”, “Gol-gol-gol!”...

p.s  2: Talvez o tempo não corra linear como água saindo de uma torneira. Talvez se pareça mais com catchup saindo aos trancos das antigas embalagens de vidro. Talvez o tempo esteja se lixando pro que eu penso dele. Talvez? Certamente.

p.s  3: Sobre assimetrias e coisas que viram outra: me lembrei da frase do Mario Quintana, “a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”.