Além do silêncio, é preciso estar com a cabeça vazia para ouvir os próprios passos. Não é comum. Seria insuportável ouvi-los sempre. Dar-se conta de cada piscada de olhos, ser consciente da escura fração de segundo cada vez que a pálpebra desce para lubrificar o globo ocular, fragmentaria tudo que vemos. Quebraria para sempre tudo que queremos unir.
É
preciso ignorar algumas coisas para conhecer outras. Vale o mesmo para os
sentimentos. “Sentir tudo com intensidade total” são palavras que ficam bem em
livros do século XIX ou canções dos anos 60; na vida real, a tradução pode ser
“não sentir nada”.
Mas
estados de hipersensibilidade ou sensibilidade embotada (opostos que dão na
mesma) às vezes pintam. Há que lidar com eles. Para mim, eles costumam
acontecer no fim dos ciclos, quando o cansaço acumulado – que era contido pela
excitação do vir a ser – cobra seu preço.
Digito
este texto e ouço o barulho das teclas. Não é comum. Seria insuportável ouvi-lo
sempre. Estou naquele (neste) estado em que tudo parece falar alto demais. Por
sorte, tenho um mantra salvador que me redime. Quase uma oração. Num misto de
desabafo e súplica, exclamo mentalmente: “Chato pra caralho!”. Pronto,
descarrego. Alívio imediato.
Não
bastam as palavras, o ritmo também é importante: ênfase nas consoantes, um “ch”
longo, pausa dramática depois do “a”, desfecho percussivo como patas de cavalos
velozes em tonalidade descendente.
Mais
ou menos assim: “Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!”.
–
Corrupção, futebol, mesa redonda?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
–
Telefone, email, menu?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
–
Gracinhas na TV, candidatos a prefeito?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
– Gente fina, cara mala, chororô?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
–
Beijinho, rockinho, diminutivinhos?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
– Sonzão, vamo tirar o pé do chão?
–
Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
– Cobranças, promessas, camaradagem de
elevador?
– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!
Nem
tudo é chato pra caralho, é claro. Dizer “tudo” é morrer. O mantra ajuda a
chegar às coisas que nunca são chatas pra caralho: um par de olhos, um sorriso...
(*)
Também
tenho um mantra especulativo. É o seguinte: fecho os olhos e fico julgando qual
seria a pior piada de todos os tempos. Busco na memória anedotas de qualidade
decrescente até empacar numa zona nebulosa em que é difícil saber se, de tão
sem graça, ainda se trata de uma piada. É neste pântano da graça sem graça que
passo um tempo especulando. É nessa coxilha que solto meu pensamento xucro pra
pastar: na impossibilidade de saber qual é a pior piada do mundo. E me divirto.
A
pior pergunta do mundo, eu sei qual é. Esta: “O que tu tá pensando?”. Não com a
intenção indignada de “quem tu pensa que é?!?” ou “que porra é essa?!?”. Me
refiro ao “que tu tá pensando” no seu sentido mais direto, disparado por alguém
que tenha intimidade suficiente para estranhar a profundeza incomum do nosso
silêncio em determinado momento.
Que
armadilha cruel disfarçada de um simples pedido para revelarmos o que estamos
pensando!
Todo
cara dado a silêncios já deve ter ouvido essa pergunta. Todos que convivem com
alguém assim já devem tê-la feito.
Tiro
pela culatra, a pergunta nos resgata de um silêncio para jogar-nos em outro.
Para respondê-la temos que pensar no que estávamos pensando. Somos obrigados a
traçar um mapa do acaso que levou nosso pensamento e... foi-se toda a
espontaneidade. Como uma luz acesa de repente que nos cega. Como uma pedra que
atinge um plácido espelho d’água que, agitado, já não devolve imagem alguma.
Uma
pedra num lago, uma gota de adoçante no café. Algo que cai numa superfície
líquida até então inerte gerando círculos concêntricos que partem em direção às
margens.
Taí
um mantra visual. Um protetor de tela pra minha cabeça, papel de parede mental.
Uma imagem distraindo a porção mais excitável do cérebro pra que a parte mais
profunda e arredia venha à tona.
Um
mantra visual. Para esquecer que as cores têm nome. Esquecer os pontos e as
linhas que ligam os pontos para que o quadro se apresente na sua totalidade.
Sem pergunta nem resposta. Sem “por quê?” nem “porque!”. Sem sentido, com
significado.
(*)
Putz,
há tantos assuntos palpitantes sobre os quais palpitar e eu só consigo pensar
numa pedra caindo na água. Eleições, crimes, julgamentos, lançamentos... e só
me interessa o espelho d’água, de repente tomado por círculos concêntricos.
Quando o último chegar à margem, neste micro tsunami, numa banheira ou copo de
uísque, a pedra, ou seja lá qual tenha sido a causa, já estará no fundo, terá
desaparecido, só restarão consequências. Irradiação fóssil.
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