terça-feira, 1 de novembro de 2016

TRAMAND(*) MANTRAS


Além do silêncio, é preciso estar com a cabeça vazia para ouvir os próprios passos. Não é comum. Seria insuportável ouvi-los sempre. Dar-se conta de cada piscada de olhos, ser consciente da escura fração de segundo cada vez que a pálpebra desce para lubrificar o globo ocular, fragmentaria tudo que vemos. Quebraria para sempre tudo que queremos unir.

É preciso ignorar algumas coisas para conhecer outras. Vale o mesmo para os sentimentos. “Sentir tudo com intensidade total” são palavras que ficam bem em livros do século XIX ou canções dos anos 60; na vida real, a tradução pode ser “não sentir nada”.

Mas estados de hipersensibilidade ou sensibilidade embotada (opostos que dão na mesma) às vezes pintam. Há que lidar com eles. Para mim, eles costumam acontecer no fim dos ciclos, quando o cansaço acumulado – que era contido pela excitação do vir a ser – cobra seu preço.

Digito este texto e ouço o barulho das teclas. Não é comum. Seria insuportável ouvi-lo sempre. Estou naquele (neste) estado em que tudo parece falar alto demais. Por sorte, tenho um mantra salvador que me redime. Quase uma oração. Num misto de desabafo e súplica, exclamo mentalmente: “Chato pra caralho!”. Pronto, descarrego. Alívio imediato.

Não bastam as palavras, o ritmo também é importante: ênfase nas consoantes, um “ch” longo, pausa dramática depois do “a”, desfecho percussivo como patas de cavalos velozes em tonalidade descendente.

Mais ou menos assim: “Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!”.

– Corrupção, futebol, mesa redonda?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Telefone, email, menu?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Gracinhas na TV, candidatos a prefeito?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Gente fina, cara mala, chororô?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Beijinho, rockinho, diminutivinhos?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Sonzão, vamo tirar o pé do chão?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Cobranças, promessas, camaradagem de elevador?

 – Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

Nem tudo é chato pra caralho, é claro. Dizer “tudo” é morrer. O mantra ajuda a chegar às coisas que nunca são chatas pra caralho: um par de olhos, um sorriso...

(*)

Também tenho um mantra especulativo. É o seguinte: fecho os olhos e fico julgando qual seria a pior piada de todos os tempos. Busco na memória anedotas de qualidade decrescente até empacar numa zona nebulosa em que é difícil saber se, de tão sem graça, ainda se trata de uma piada. É neste pântano da graça sem graça que passo um tempo especulando. É nessa coxilha que solto meu pensamento xucro pra pastar: na impossibilidade de saber qual é a pior piada do mundo. E me divirto.

A pior pergunta do mundo, eu sei qual é. Esta: “O que tu tá pensando?”. Não com a intenção indignada de “quem tu pensa que é?!?” ou “que porra é essa?!?”. Me refiro ao “que tu tá pensando” no seu sentido mais direto, disparado por alguém que tenha intimidade suficiente para estranhar a profundeza incomum do nosso silêncio em determinado momento.

Que armadilha cruel disfarçada de um simples pedido para revelarmos o que estamos pensando!

Todo cara dado a silêncios já deve ter ouvido essa pergunta. Todos que convivem com alguém assim já devem tê-la feito.

Tiro pela culatra, a pergunta nos resgata de um silêncio para jogar-nos em outro. Para respondê-la temos que pensar no que estávamos pensando. Somos obrigados a traçar um mapa do acaso que levou nosso pensamento e... foi-se toda a espontaneidade. Como uma luz acesa de repente que nos cega. Como uma pedra que atinge um plácido espelho d’água que, agitado, já não devolve imagem alguma.

Uma pedra num lago, uma gota de adoçante no café. Algo que cai numa superfície líquida até então inerte gerando círculos concêntricos que partem em direção às margens.

Taí um mantra visual. Um protetor de tela pra minha cabeça, papel de parede mental. Uma imagem distraindo a porção mais excitável do cérebro pra que a parte mais profunda e arredia venha à tona.

Um mantra visual. Para esquecer que as cores têm nome. Esquecer os pontos e as linhas que ligam os pontos para que o quadro se apresente na sua totalidade. Sem pergunta nem resposta. Sem “por quê?” nem “porque!”. Sem sentido, com significado.

(*)

Putz, há tantos assuntos palpitantes sobre os quais palpitar e eu só consigo pensar numa pedra caindo na água. Eleições, crimes, julgamentos, lançamentos... e só me interessa o espelho d’água, de repente tomado por círculos concêntricos. Quando o último chegar à margem, neste micro tsunami, numa banheira ou copo de uísque, a pedra, ou seja lá qual tenha sido a causa, já estará no fundo, terá desaparecido, só restarão consequências. Irradiação fóssil.

Sigo focado num mantra que cega e faz enxergar.

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