sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Tipo... 90%

Rolou na www, meses atrás, um video interessante: durante 10 anos um cara fez uma simples pergunta a diversos artistas (a maioria, músicos): "Lennon ou McCartney?". Curto e grosso. Lennon ou McCartney, como num plebiscito. As respostas viraram um documentário.

De inicio, achei péssima ideia. Não sou muito fã de listas de 10+, retrospectivas de fim de ano, seleções de todos os tempos... desconfio de esquemas rígidos que tentem enquadrar a realidade, vivências e sensações. Mas reconheço que são tentativas divertidas, que geram bons papos e que podem nos mostrar muitas coisas, ainda que por tabela, diferentes da intenção primeira.

O resultado da enquete é o que menos interessa. Nesses casos, cada voto é um mundo particular e não faz sentido somar mundos particulares pois o resultado nunca será um mundo coletivo. O que me chamou atenção foi a falta de sinceridade em, digamos, 90% das respostas.

Artistas geralmente são pavões que só gostam de falar de si mesmos. Como naquela piada em que um diretor de cinema estava jantando com uma garota e, depois de uma hora falando sobre si mesmo, disse "Ok, chega de falarmos de mim, vamos falar de você: diga-me o que você achou do meu último filme". Artistas pop, como políticos, entre falar a verdade ou algo que os deixe bem com seu público, às vezes titubeiam.

90% (digamos) dos entrevistados no documentário "John ou Paul" estava ciente de que, no momento, é mais cool optar por John. Na sua característica mais asquerosa, o mundo pop define com obsolescência programada o que é cool. Chega uma hora em que o cool deixa de ser cool (geralmente quando ganha as massas).

Foi muito interessante sacar, nos poucos segundos antes de dar a resposta, o cérebro dos entrevistados trabalhando a mil para dizer algo interessante, descolado, surpreendente. Vários quiseram parecer mais que cool ao girar em 180 graus a seta do coolismo, citando a ousadia do autor de Helter Skelter; outros mandaram as respostas malandrinhas de sempre (trocadilhos com Lennon/Lenin, votos no George, no Ringo, no Keith Richards... e um metido a besta disse "nenhum dos dois"). Também foi citado o clichê "juntos eram maiores que a soma das partes".

Digamos que 90% dos caras e minas quiseram usar a questão para fazer um manifesto em uma frase enaltecendo... a si mesmo. Ao fim dos vinte minutos de documentário, depois de centenas de declarações, pouca gente pareceu sincera. Talvez porque a resposta franca para a maioria das pessoas fosse pouco midiática, um anticlímax: "não sei" ou "os dois".

Das respostas mais honestas, 90% (digamos) foram de mulheres. Corroborando minha tese de que elas são mais maduras; por isso (geralmente) não discutem futebol nem fazem guerras.

E aí, quem você prefere: Yoko ou Linda (com L maiúsculo)?


Ps.: Não sou capaz de escolher entre John e Paul. Mesmo. Gosto dos dois. Mesmo. Tenho toda a discografia do Lennon e só uma coletânea do McCartney; mas, se um arqueólogo do futuro quisesse deduzir minha preferência através do exame de minha discoteca, cometeria um equívoco pois, como disse uma das entrevistadas sobre quem esnoba Paul: "Tente escrever Eleanor Rigby e veja como você se sai". 


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

M(*)ney


Dinheiro. Astral estranho cerca esta palavra. Seja na especulação online, global e sem cheiro, seja nas imundas notas amassadas do mundo físico; é um astral estranho.

Tranquilizo quem resistiu a este par de frases hippongas e continua lendo: eu sei que se pode comprar coisas bacanas. Não só objetos: dá pra comprar tempo, informação e saúde. Mas também dá pra fazer um monte de merda com tempo, informação e um cirurgião plástico.

Não conheço ninguém que goste de dinheiro. Quase todo mundo que eu conheço gosta (adora, venera, necessita) do poder e do prazer que o dinheiro pode trazer.

(*)

Tudo na vida tem um lado bom e um lado ruim (com exceção dos LPs do Pink Floyd, que tinham dois lados bons). O dinheiro tem um lado interessante: ele é sincero, fala alto e deixa tudo explícito. É uma ferramenta útil para explicar como e porque andam as coisas. Money talks, bullshit walks

(*)

Para facilitar a convivência, nossa tragicômica raça criou relógios, sinais de trânsito, apertos de mão, gramática e moeda. São algodões entre cristais. Mal usados, relógios, sinais de trânsito, apertos de mão, gramática e moeda se transformam em elefantes numa loja de cristais. Ah, nossa cristalina raça...

O que acontece com a boa ou má utilização do dinheiro, todos sabemos. O que frequentemente esquecemos é de reconhecer sua importância como mediador de trocas. Imagine se não existisse: se eu fosse músico, teria que pagar meu médico com uma canção! E se nenhum médico gostasse do meu som? Por outro lado, nenhum ginecologista jamais poderia ouvir minhas músicas pois eu não teria uso para seus serviços.

Claro, poderíamos fazer tudo por amor. Mas... ah, o amor! Melhor não sobrecarregá-lo, né? Melhor deixá-lo florescer ao seu modo. Onde e quando menos se espera. Frágil e imortal.

(*)

Alguns artistas (e todas as religiões) também oferecem sistemas para explicar o mundo. E há os pensadores, é claro. Marx e Adam Smith. Freud e Jung. Einstein, Newton, Copérnico, Galileu... O grande Darwin! Todos com sacadas geniais. Cada um na sua.

Tudo na vida tem dois lados: um bom e outro ruim (com exceção dos discos do ............. , que só têm lado ruim). Quando um sistema é muito bem concebido, é difícil escapar da tentação de usá-lo fora de contexto. É conhecido o caso do cientista soviético que tentava aplicar as ideias de Marx na (pásmem!) genética das plantas. Também é muito comum usarem, erroneamente, o darwinismo para explicar movimentos sociais. O dinheiro, nem se fala, tá sempre entrando onde não foi convidado: nas relações familiares, nas amizades... no amor? Nah... Deixemos o amor em paz. Falar de amor não é amar.

Com exceção das religiões (que são indiscutíveis por se basearem na fé e em dogmas) todos os sistemas pra explicar o mundo, por melhor que sejam, são parciais. Eles têm limites. A realidade nunca se deixa capturar completamente. Algumas vezes até parece que ela não existe, né?

Acho que enveredei por esta trilha porque começou a tocar nos meus fones a canção que diz: it all makes perfect sense expressed in dollars and cents, pounds shillings and pence. E, por um momento, tudo fez sentido. Só por um momento.

A realidade, bichinho assustado, escapou de novo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Diário

Uma folha em branco ao lado de uma caneca cheia de lápis que, com suas pontas para cima, parecem lanças em repouso numa tribo invisível. E o silêncio de uma manhã que não começou.

Um passeio rápido pelas notícias deixa claro: tudo escuro.

Talvez não... não sei... entendo pouco de economia e é difícil confiar em qualquer um desses spin doctors que falam o tempo inteiro, sempre dando curva e nó em pingo d'água. Sempre deformando os fatos para caberem em suas teses.

Gosto das palavras. E do silêncio. Por isso me chateia quando não nos deixam confiar nelas, quando não dão espaço a ele.

É frustrante quando situações cada vez mais complexas geram atitudes cada vez mais simplistas. Há quem associe esse descompasso ao imediatismo das redes sociais. Será? Não sei... acho que rola também uma preguiça e falta de noção que se expressam ali por conveniência mas são naturais das pessoas. Ainda mais quando estão assustadas. E como me parecem assustadas as pessoas no momento!

Ok, ok, menos... talvez seja essa gripe fora de época que me deixa a fim de ficar na minha, em silêncio. É possível silêncio ou, nesses dias demasiado barulhentos, ele é um buraco n'água?

Tento imaginar como seria tal buraco enquanto observo o redemoinho de água prestes a descer pelo ralo da pia enquanto preparo o chá nesta manhã que nem começou.

Gosto das palavras e dos silêncios dos poetas. Dia desses, passou por meus olhos, novamente, este poema do Hans Magnus Enzensberger. Coincidência?




terça-feira, 1 de novembro de 2016

TRAMAND(*) MANTRAS


Além do silêncio, é preciso estar com a cabeça vazia para ouvir os próprios passos. Não é comum. Seria insuportável ouvi-los sempre. Dar-se conta de cada piscada de olhos, ser consciente da escura fração de segundo cada vez que a pálpebra desce para lubrificar o globo ocular, fragmentaria tudo que vemos. Quebraria para sempre tudo que queremos unir.

É preciso ignorar algumas coisas para conhecer outras. Vale o mesmo para os sentimentos. “Sentir tudo com intensidade total” são palavras que ficam bem em livros do século XIX ou canções dos anos 60; na vida real, a tradução pode ser “não sentir nada”.

Mas estados de hipersensibilidade ou sensibilidade embotada (opostos que dão na mesma) às vezes pintam. Há que lidar com eles. Para mim, eles costumam acontecer no fim dos ciclos, quando o cansaço acumulado – que era contido pela excitação do vir a ser – cobra seu preço.

Digito este texto e ouço o barulho das teclas. Não é comum. Seria insuportável ouvi-lo sempre. Estou naquele (neste) estado em que tudo parece falar alto demais. Por sorte, tenho um mantra salvador que me redime. Quase uma oração. Num misto de desabafo e súplica, exclamo mentalmente: “Chato pra caralho!”. Pronto, descarrego. Alívio imediato.

Não bastam as palavras, o ritmo também é importante: ênfase nas consoantes, um “ch” longo, pausa dramática depois do “a”, desfecho percussivo como patas de cavalos velozes em tonalidade descendente.

Mais ou menos assim: “Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!”.

– Corrupção, futebol, mesa redonda?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Telefone, email, menu?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Gracinhas na TV, candidatos a prefeito?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Gente fina, cara mala, chororô?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

– Beijinho, rockinho, diminutivinhos?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Sonzão, vamo tirar o pé do chão?

– Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

 – Cobranças, promessas, camaradagem de elevador?

 – Chhhhhhhá – – Topaca – Ralho!

Nem tudo é chato pra caralho, é claro. Dizer “tudo” é morrer. O mantra ajuda a chegar às coisas que nunca são chatas pra caralho: um par de olhos, um sorriso...

(*)

Também tenho um mantra especulativo. É o seguinte: fecho os olhos e fico julgando qual seria a pior piada de todos os tempos. Busco na memória anedotas de qualidade decrescente até empacar numa zona nebulosa em que é difícil saber se, de tão sem graça, ainda se trata de uma piada. É neste pântano da graça sem graça que passo um tempo especulando. É nessa coxilha que solto meu pensamento xucro pra pastar: na impossibilidade de saber qual é a pior piada do mundo. E me divirto.

A pior pergunta do mundo, eu sei qual é. Esta: “O que tu tá pensando?”. Não com a intenção indignada de “quem tu pensa que é?!?” ou “que porra é essa?!?”. Me refiro ao “que tu tá pensando” no seu sentido mais direto, disparado por alguém que tenha intimidade suficiente para estranhar a profundeza incomum do nosso silêncio em determinado momento.

Que armadilha cruel disfarçada de um simples pedido para revelarmos o que estamos pensando!

Todo cara dado a silêncios já deve ter ouvido essa pergunta. Todos que convivem com alguém assim já devem tê-la feito.

Tiro pela culatra, a pergunta nos resgata de um silêncio para jogar-nos em outro. Para respondê-la temos que pensar no que estávamos pensando. Somos obrigados a traçar um mapa do acaso que levou nosso pensamento e... foi-se toda a espontaneidade. Como uma luz acesa de repente que nos cega. Como uma pedra que atinge um plácido espelho d’água que, agitado, já não devolve imagem alguma.

Uma pedra num lago, uma gota de adoçante no café. Algo que cai numa superfície líquida até então inerte gerando círculos concêntricos que partem em direção às margens.

Taí um mantra visual. Um protetor de tela pra minha cabeça, papel de parede mental. Uma imagem distraindo a porção mais excitável do cérebro pra que a parte mais profunda e arredia venha à tona.

Um mantra visual. Para esquecer que as cores têm nome. Esquecer os pontos e as linhas que ligam os pontos para que o quadro se apresente na sua totalidade. Sem pergunta nem resposta. Sem “por quê?” nem “porque!”. Sem sentido, com significado.

(*)

Putz, há tantos assuntos palpitantes sobre os quais palpitar e eu só consigo pensar numa pedra caindo na água. Eleições, crimes, julgamentos, lançamentos... e só me interessa o espelho d’água, de repente tomado por círculos concêntricos. Quando o último chegar à margem, neste micro tsunami, numa banheira ou copo de uísque, a pedra, ou seja lá qual tenha sido a causa, já estará no fundo, terá desaparecido, só restarão consequências. Irradiação fóssil.

Sigo focado num mantra que cega e faz enxergar.

sábado, 29 de outubro de 2016

C(*)NVIVÊNCIA

No tempo em que se falava de política com receio e olhando pros lados, uma piada de humor negro dizia que “a esquerda brasileira só se une na prisão”. E era verdade. Quanto mais aparentemente próximos nas ideias, maior a dificuldade de união na vida real. A regra era subdivisão em correntes, facções e subgrupos. Pra ficar num exemplo folclórico: era quase impossível ver o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil juntos. 

(*)

Já vi religiosos de crenças bem parecidas (originadas no mesmo cristianismo) discutindo com uma veemência que não usariam em discussões com agnósticos ou seguidores de outras tradições.

Água e azeite, tão próximos e tão distantes.

(*)

Às vezes é mesmo mais difícil mudar pequenos detalhes e vencer pequenas distâncias do que fazer gestos grandiloquentes e dar grandes saltos, né? Mais fácil mudar de profissão do que mudar o modo de encarar a profissão. Mais fácil ir morar em outro continente do que ir dormir no quarto ao lado.

(*)

Narcisismo das pequenas diferenças é um conceito usado por Freud. Se entendi bem, se refere a situações em que o pouco que há de diferente (entre duas pessoas, duas cidades, países) se sobrepõe ao muito que há em comum.

Ouvi a expressão em dois momentos bem distintos: numa palestra sobre a II Guerra Mundial (que abordava a rivalidade entre nações vizinhas, culturalmente próximas) e num papo com um amigo que achava seus primos chatos e suas primas pouco atraentes (ah, a distância entre parentes próximos...).

Freud, como todo grande poeta, sempre dá pano pra manga. Seja na sala de aula ou na mesa do bar.


Ps.:
Narciso é aquele que (segundo Caetano Veloso na letra de Sampa) acha feio o que não é espelho.


Ps 2.: Tentando descobrir mais sobre o tal narcisismo das pequenas diferenças no amansa-burro digital, tropecei numa parábola de Schopenhauer:


Em um gelado dia de inverno, os membros da sociedade de porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de aquecerem-se os fez voltarem a juntar-se, se repetiu aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Pequenos Contos (9)

Ninguém sabe como o incêndio começou. Quando o colorido da favela deu lugar às brasas escuras, ecos de lamentos se fizeram ouvir. Menos de Mauro, que pensava coisas do horizonte. Fabrícia chegou do serviço e ele abraçou seu pranto. “Queimou besteira só. Minha casa é você, sua casa sou eu.'' Os jornalistas guardaram seus bloquinhos em um nó da garganta. E, naquele bairro, números viraram pessoas pela primeira vez.

Pequenos Contos (8)

Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que tinha a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Nas chuvas, refugiava-se no moinho, girava a roda d'água e uma curva colorida surgia. Orgulho. Quem tem avô poderoso assim? Até que o coração do velho desabou sobre a plantação. Girou o moinho a fim de pintar para ele, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez.